Estudo das vias que provocam casos fatais de hepatite A fazem da doença um modelo importante para estudar reações do sistema imunológico, de acordo com Sergio Rosenzweig, dos NIH (divulgação/CDC)
Fábio de Castro | Agência FAPESP
Ao contrair o vírus da hepatite A, a maior parte das pessoas permanece ilesa e nem chega a apresentar sintomas. Para alguns indivíduos, no entanto, a hepatite A desencadeia inflamação e necrose do fígado, levando à morte.
Por muitos anos, os cientistas procuraram nos vírus diferenças – ainda que fossem minúsculas – que pudessem explicar tamanha variação de manifestações clínicas. Mas não conseguiram encontrar uma resposta.
A comunidade científica agora tem uma nova convicção: o lugar certo para buscar uma resposta não é o vírus e sim o hospedeiro, de acordo com o Sergio Rosenzweig, do Laboratório de Defesas do Hospedeiro do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas – um dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos.
"É no homem, e não no vírus, que se encontram as diferenças fundamentais que fazem com que alguns escapem ilesos e outros sejam levados à morte pelo vírus da hepatite A", disse o especialista argentino, que participou em dezembro da São Paulo Advanced School on Primary Immunodeficiencies: Unraveling Human Immuno-Physiology, promovida pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com o Instituto Gulbenkian de Ciência, de Portugal.
Organizado no âmbito da Escola São Paulo de Ciência Avançada (ESPCA) – modalidade de apoio lançada pela FAPESP em 2009 –, o evento reuniu 77 estudantes brasileiros e estrangeiros envolvidos com pesquisas relacionadas às imunodeficiências primárias. O foco dos estudos consiste em ver as imunodeficiências primárias como um experimento da natureza, que possibilita o avanço do conhecimento sobre a fisiologia do sistema imune humano.
Os casos fatais de hepatite A, de acordo com Rosenzweig, podem ser controlados pela vacinação em massa. Mas a característica da doença – que leva o sistema imunológico a atacar as células do fígado – fazem dela um modelo importante para ampliar o conhecimento sobre a imunologia.
Agência FAPESP – A prevalência da hepatite A é alta em todo o mundo?
Sergio Rosenzweig – A hepatite A é muito prevalente em continentes como a África e Ásia e em países como o México, o Brasil e a Argentina. Provavelmente, a maior parte dos pacientes pediátricos se infecta com o vírus em um momento muito precoce da vida: são soropositivos antes dos 8 anos de idade. Quando chegam aos 10 anos, 80% já ficaram provavelmente expostas ao vírus nesses países, o que significa que se tratam de áreas de alta endemicidade em relação a essa infecção.
Agência FAPESP – Por que essa prevalência apenas em determinadas áreas ?
Rosenzweig – O problema é que as hepatites A e B são transmitidas oralmente pelas fezes e, portanto, sua transmissão está associada à falta de higiene. A rota de transmissão é fecal-oral: alguém faz suas necessidades, não lava as mãos e prepara a comida para outras pessoas, por exemplo. Então, lugares no mundo em desenvolvimento onde se bebe água de poço, ou onde não há sistema de esgoto, são locais em que as hepatites A e a B são muito prevalentes.
Agência FAPESP – A infecção é transmitida por um vírus. Por que estudá-la a partir do ponto de vista da imunologia e não da infectologia apenas? O que caracteriza a hepatite A como uma imunodeficiência?
Rosenzweig – Na realidade, o vírus propriamente não é agressivo. Ele ataca principalmente o fígado, mas não causa grandes problemas por si só. Ele infecta os hepatócitos – que são as principais células no fígado – e fica lá dentro até que o sistema imune limpe a infecção. Há alguns vírus que são altamente citopáticos – o que quer dizer que matam as células infectadas por eles. Mas esse vírus da hepatite A entra no corpo e não provoca quase nada, até que o sistema imune resolve eliminá-lo. É principalmente o sistema imune o responsável pela manifestação clínica.
Agência FAPESP – O vírus não provoca sintomas clínicos, mas desencadeia um ataque do próprio organismo?
Rosenzweig – Sim. A maior parte dos pacientes infectados com esse vírus não tem manifestações clínicas. Cerca de 70% dos que são infectados ficam com uma "cicatriz imunológica", isto é, adquirem anticorpos porque foram expostos. Não se sabe quando foram expostos, porque não tiveram nenhuma manifestação clínica. A questão é que o vírus se aloja no interior do hepatócito. O sistema imune, muito agressivo, eventualmente identifica a infecção no hepatócito e tenta matar o vírus no seu interior. O resultado é que ele acaba matando o próprio hepatócito, produzindo a hepatite. Nesse tipo de infecção, o agente é um problema, mas o sistema imune é um problema muito maior, porque ele produz mais danos do que o agente infeccioso.
Agência FAPESP – Quais são os principais desafios científicos envolvidos com essa doença?
Rosenzweig – Temos visto que pacientes infectados com o vírus da hepatite A, em sua grande maioria, não apresentam manifestações clínicas. Em aproximadamente 30% dos casos, há apenas um número de manifestações muito amenas e autolimitadas. Mas um em cada mil ou 10 mil indivíduos infectados com esse mesmo vírus morre com a infecção.
Agência FAPESP – O problema central, então, consiste em descobrir quais são os fatores que fazem com que o mesmo vírus possa produzir tamanha diversidade de manifestações clínicas?
Rosenzweig – Exato. Temos um vírus que não é mais ou menos agressivo – é o mesmo vírus – que pode produzir infecções assintomáticas, hepatite autolimitada, em cerca de um terço dos casos, mas também pode matar o indivíduo. O mesmo vírus pode produzir essa imensa variedade de fenótipos clínicos. Então a questão é, se o mesmo vírus pode não produzir absolutamente nada, como é capaz de matar um indivíduo? Não há mudanças no vírus. Então, não é um problema com ele, mas um problema com o hospedeiro infectado. Essa é nossa questão. É fácil entender quando há vírus mais ou menos agressivos, causando manifestações mais ou menos graves. Mas é preciso entender como um mesmo vírus pode ser inofensivo para a maior parte dos pacientes enquanto um pequeno grupo é tão suscetível que pode morrer.
Agência FAPESP – Por que até agora não foram encontradas essas respostas?
Rosenzweig – Não é que os cientistas não estavam procurando pelas respostas, mas, possivelmente, buscavam no lugar errado. Foram publicados muitos artigos sobre os diferentes genomas dos vírus, com análises sobre as mínimas variações entre eles. Acreditava-se que a resposta deveria estar no vírus. Agora, sabemos que o vírus não é o problema. Temos que mudar o foco.
Agência FAPESP – Alguma descoberta específica levou a essa mudança de perspectiva?
Rosenzweig – Não foi bem isso. A questão é que se você tem um martelo, tudo parece ser um prego. Então, para os infectologistas, as questões relacionadas a infecções desse tipo sempre pareceram, obviamente, obra de agentes infecciosos. Mas também temos um martelo e, para nós, cada tipo diferente de manifestação clínica depende do hospedeiro e não do vírus. A comunidade científica que se dedica às doenças infecciosas já forneceu toda informação possível sobre o vírus e vimos que agora temos pela frente o desafio de estudar o hospedeiro.
Agência FAPESP – A investigação foi esgotada do ponto de vista dos infectologistas?
Rosenzweig – Eles já forneceram muita informação possível sobre o hospedeiro – até mesmo no sentido reverso –, tentando demonstrar que o vírus era o responsável. Mas não puderam provar isso. Agora, então, sabemos que não é o vírus. Só pode ser o hospedeiro. Então, estamos tentando explorar quais fatores ligados ao hospedeiro podem estar envolvidos com essa diversidade da manifestação clínica.
Agência FAPESP – As pesquisas na área de genética podem ajudar a fornecer pistas?
Rosenzweig – Até agora não temos nenhum tipo de achado científico que implique qualquer mudança clínica ou médica que possa ajudar a comunidade de pacientes. Se acontecer algum avanço a partir de uma descoberta, talvez isso nos ajude a entender um pouco mais a patofisiologia da doença.
Agência FAPESP – Houve algum avanço notável recentemente?
Rosenzweig – Temos alguns bons exemplos clínicos. Nas comunidades onde foram introduzidas vacinações de hepatite, esses casos de falência hepática total desapareceram quase completamente. Isso significa que provavelmente vacinar a população em massa para hepatite talvez possa superar qualquer tipo de imunodeficiência que causa a suscetibilidade para esse tipo de infecção.
Agência FAPESP – A vacinação pode ser a saída para erradicar a doença?
Rosenzweig – O que quero dizer é que há diferentes caminhos. Temos problemas epidemiológicos, problemas de pacientes individuais e questões científicas. Às vezes esses problemas se combinam, às vezes não. Acho que a abordagem epidemiológica é: se vacinarmos, provavelmente superaremos muitos dos tipos de suscetibilidades que podemos ter. Mas, aí, passa-se para a questão científica: se encontrarmos qualquer coisa nova nessa via, isso nos ajudará a compreender como é que o sistema imunológico pode nos prejudicar quando tenta se livrar de algum agente infeccioso.
Agência FAPESP – Então, os estudos devem ser feitos não apenas para controlar a hepatite A, mas para aprofundar o conhecimento sobre o sistema imunológico?
Rosenzweig – Sim, pois podemos extrapolar os dados para outras situações para tentar modular a resposta imune. Porque, às vezes, o sistema imune, mesmo se está "bem intencionado", a fim de controlar a infecção, acaba produzindo uma reação que pode ser mais problemática do que a própria infecção. É importante compreender essas vias.
Agência FAPESP – A incidência da hepatite está crescendo de alguma maneira, ou se mantém sempre no mesmo patamar?
Rosenzweig – Tendo em mente que a maior parte dos casos é assintomática no início e lembrando que normalmente a notificação não é obrigatória, não temos dados muito bons sobre a prevalência ao longo do tempo – isto é, sobre a incidência: quantos casos novos temos por ano. Estima-se que se trata de uma infecção muito prevalente e suspeita-se que há mais de 10 milhões de novos casos por ano. Mas achamos que isso ainda é um número muito subestimado, porque também se avalia que sete de cada dez casos não são relatados, por não terem manifestação clínica. Talvez a incidência real seja muito maior. Não sabemos. Temos que levar em conta também que é uma doença muito orientada geograficamente. Se formos à Finlândia a incidência será certamente muito menor do que em países como México, Brasil ou Argentina antes da vacinação da hepatite A. Sabemos que, antes da vacinação, a prevalência era muito alta. Depois, a incidência caiu significativamente e não apenas em relação aos casos em geral, mas os casos fulminantes caem quase a zero. A vacinação foi uma intervenção muito boa em termos de política de saúde pública e individual.
Agência FAPESP – Como é feito o diagnóstico?
Rosenzweig – O diagnóstico é sorológico, procura-se pela resposta imune. Sempre que vamos fazer microbiologia ou diagnóstico de infecção, há essas duas abordagens: o diagnóstico direto – quando procuramos o microrganismo ou algo que ele produza, como um antígeno – ou o diagnóstico indireto, que é a resposta imune. Para hepatite, o diagnóstico é indireto, baseado em sorologia. Procuramos dois tipos de anticorpos para hepatite: o IGM e o IGG. Se encontramos o IGM, significa que o paciente foi exposto recentemente à infecção. Se encontramos o IGG, significa que foi exposto há algum tempo.
Agência FAPESP – E o tratamento é muito difícil?
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